quarta-feira, 2 de abril de 2025

Quando a normalidade nunca voltou

Hoje faz anos que meu pai faleceu, não direi quantos anos, porque me recuso a pensar que o tempo passou e a dor não.

É um dia que carrego comigo, cheio de detalhes que ainda consigo lembrar, mesmo que, no trauma, tenhamos perdido a capacidade de reter tudo com clareza. Meu irmão não se lembra de muitos aspectos, então cabe a mim relembrá-lo. Foi um dia triste, mas já esperado. Ele estava doente há tempos, e sua partida, embora dolorosa, parecia inevitável.

Lembro de como minha mãe sentia a aproximação da morte dele. Pela ligação profunda que tinham, ela percebia, dia após dia, que ele ia partir. Cada toque do telefone nos deixava em suspense, esperando uma notícia ruim. Era uma angústia constante.

Meu pai, aquele homem inteligente, de letra bonita, começou a mudar. Lembro do seu adoecimento, de como ele foi definhando aos poucos, de como o perdíamos fragmento por fragmento. Ele começou a esquecer das coisas, fazia perguntas sem sentido, tinha ações confusas e estranhas. Havia um desleixo consigo mesmo, uma espécie de desistência. E quando desistimos de nós, nos corroemos mais rápido. A vida passa depressa, e o sofrimento excessivo parece acelerar o tempo. Tenho a sensação de que envelheci muito desde então, como se sua morte tivesse aberto em mim uma consciência de uma vida vivida em poucas horas.

Numa tentativa de reconstruir as memórias que perdi, sempre busco as coisas que escrevi sobre ele. A escrita sempre foi minha companheira, desde pequena. Foi meu pai quem, aos sete anos, me deu um diário com cadeado e capa azul, onde eu registrava minha rotina e meus segredos infantis. Guardei aqueles diários por anos, mas os perdi com as mudanças constantes — de uma casa para outra, de um país para outro. E depois que meu pai faleceu, minha mãe também partiu. Ficamos sozinhos, meu irmão e eu. Tínhamos que nos mudar para uma casa menor. Tantas coisas. Tantas memórias. Tínhamos que dividir, guardar em diferentes locais. E assim, as coisas foram se perdendo. Também as memórias
Tal como a memória, eles se foram. Talvez por isso eu escreva tanto agora: numa ânsia de recuperar o que perdi, de fugir da solidão da alma que sinto. Mesmo em tempos em que estava cercada de gente, ainda me sentia sozinha.

Quando ele faleceu, escrevi isto:
"Hoje, vivendo a orfandade, sei que tenho os amigos que me cercam nesta luta que é grande. Em um momento em que a conjuntura nos massacra, também é hora de nos fortalecermos entre e com os nossos."
E nos dias em que as aflições parecem não ter fim, percebemos que, por mais difícil que pareça, continuar é necessário. A vida sempre vem em nosso socorro com todas as suas ninharias habituais, suas restrições, suas pequenas alegrias. Aos poucos, vamos despertando para novas sensibilidades e assim seguimos.

Vivendo.

Nos apoiando naqueles que são nossos referenciais de potencial humano: os amigos, as leituras...
Indivíduos que nos rodeiam, que nos talham e que também nos salvam. No empenho cotidiano e mútuo em estabelecer relações mais humanas, são eles que nos dão forças e nos encorajam a seguir."

Um mês apos a sua morte escrevi para uma amiga:


"Não voltamos à normalidade aqui em casa ainda. Meu pai ainda se faz presente de forma bastante triste. Já faz um mês que ele se foi, e chorei muito esses dias porque penso que perdi um amigo. Faz falta nossas conversas. Hoje fez um mês que meu pai faleceu, e eu queria muito ter alguém para chorar e dividir a tristeza, mas todos estão com suas dificuldades. Então, eu escrevo, às vezes ligo, vou tentando amenizar esta dor que, talvez, seja até incompreensível para alguns. Inclusive, estou chorando enquanto escrevo aqui. E também não quero incomodar minha mãe toda vez que falo, porque ela chora, então evito"

Na época, eu realizava um projeto na escola sobre os 50 anos da ditadura militar. Era uma atividade de quatro dias, com filme e café coletivo, para reforçarmos nossos valores coletivos de luta. No segundo dia do projeto, meu pai faleceu, e a atividade não se concretizou. Lembro da diretora, no final do ano, ter elogiado meu esforço em realizar o projeto, mesmo sem concluí-lo. Aquela interrupção foi mais um reflexo de como sua partida afetou tudo ao meu redor.

Hoje, ao lembrar dele, sinto a ausência como um peso e, ao mesmo tempo, como uma força que me impulsiona a continuar escrevendo, vivendo, buscando sentido. A morte dele me deixou com uma mistura de saudade, dor e gratidão pelos momentos que compartilhamos. E assim, seguimos.

E passados tantos anos ainda me sinto igual, as vezes esqueço da tristeza, mas ela sempre volta, diariamente e não há um dia que eu não me lembre. 

A normalidade nunca voltou. 


sábado, 8 de março de 2025

Coração Selvagem

Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão

O meu som e a minha fúria e essa pressa de viver

E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza

E arriscar tudo de novo com paixão

Andar caminho errado pela simples alegria de ser

Belchior 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Nos bailes da vida

Cantar era buscar o caminho

Que vai dar no sol

Tenho comigo as lembranças do que eu era

Para cantar nada era longe tudo tão bom

Até a estrada de terra na boléia de caminhão

Era assim


Milton Nascimento

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Caçador de mim

Por tanto amor

Por tanta emoção

A vida me fez assim

Doce ou atroz

Manso ou feroz

Eu, caçador de mim

Preso a canções

Entregue a paixões

Que nunca tiveram fim

Vou me encontrar

Longe do meu lugar

Eu, caçador de mim

Nada a temer senão o correr da luta

Nada a fazer senão esquecer o medo, medo

Abrir o peito a força, numa procura

Fugir às armadilhas da mata escura...


Milton Nascimento

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Passagem do ano - Carlos Drummond de Andrade

 PASSAGEM DO ANO

(Carlos Drummond de Andrade)

 

O último dia do ano

não é o último dia do tempo.

Outros dias virão

e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.

Beijarás bocas, rasgarás papéis,

farás viagens e tantas celebrações

de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,

que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,

os irreparáveis uivos

do lobo, na solidão.

 

O último dia do tempo

não é o último dia de tudo.

Fica sempre uma franja de vida

onde se sentam dois homens.

Um homem e seu contrário,

uma mulher e seu pé,

um corpo e sua memória,

um olho e seu brilho,

uma voz e seu eco,

e quem sabe até se Deus…

 

Recebe com simplicidade este presente do acaso.

Mereceste viver mais um ano.

Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.

Teu pai morreu, teu avô também.

Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,

mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,

e de copo na mão

esperas amanhecer.

 

O recurso de se embriagar.

O recurso da dança e do grito,

o recurso da bola colorida,

o recurso de Kant e da poesia,

todos eles… e nenhum resolve.

 

Surge a manhã de um novo ano.

 

As coisas estão limpas, ordenadas.

O corpo gasto renova-se em espuma.

Todos os sentidos alerta funcionam.

A boca está comendo vida.

A boca está entupida de vida.

A vida escorre da boca,

lambuza as mãos, a calçada.

A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Adélia Prado – Poema esquisito

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.

Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.

Ninguém tem culpa.

Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,

não existe mais o modo

de eles terem seus olhos sobre mim.

Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?

É dentro de mim que eles estão.

Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.

Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,

que abunda nos cemitérios.

Quem plantou foi o vento, a água da chuva.

Quem vai matar é o sol.

Passou finados não fui lá, aniversário também não.

Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?

É de tanto lembrá-los que eu não vou.

Ôôôô pai

Ôôôô mãe

Dentro de mim eles respondem

tenazes e duros,

porque o zelo do espírito é sem meiguices:

Ôôôôi fia.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Quando se aprende muito cedo a abrir as asas da alma

 

Hoje faz nove anos que ela se foi. 
Ainda lembro de tudo, naquela sequência de dias tristes que me levaram a encontrar o mais profundo sentimento de perda. 
Eu já estava psiquicamente debilitada por ter perdido meu pai meses antes. 
É estranho perder os pais tão jovem e em tão curto espaço de tempo. 
Parece que a vida está a nos perseguir. Mas, depois, lembramos que há muito sofrimento no mundo, e que o nosso não é o único. Ainda assim, nosso sentimento egoísta insiste em acreditar que a dor que carregamos é maior, ou mais única.

Sempre penso em algo que aprendi com a Isildinha nesses anos:  "Olha sempre para o lado, olha para baixo, e perceba que há muito mais além de nós neste mundo."  

Voltando àquele dia…
lembro que foram incontáveis horas de tristeza contínua e distante. 
Mesmo agora, nove anos depois, tento sempre reprimir o choro para seguir e até para escrever.
Aliás, minha mãe sempre dizia: "Quem chora muito envelhece rápido."

Naquele dia, porém, não consegui reprimir o choro. Mas ele demorou a vir. Acho que fiquei em choque por alguns minutos.
Lembro de estar em um café e de ter que sair abruptamente, para a certa confusão da pessoa que me atendia.  Como pode alguém pedir um café, pagar, não tomá-lo e ir embora sozinha, apressada, como se tivesse recebido uma notícia ruim?  

Sem deixar que ela me alcançasse, fui embora. 
Pensei que ela seria incapaz de me entender e posso ter me enganado, às vezes o apoio vem de onde menos esperamos.

Com medo, me escondi em casa, sozinha. 
Mandei uma mensagem para o Bruno, que estava na aula. 
Não sei por que não fui à aula. Talvez porque já não aguentava o peso daqueles últimos dias. Meu corpo dava sinais disso: alergias inexplicáveis, médicos receitando calmantes, enxergando um sintoma, mas não a dor.  Coisas que também aprendi com o sofrimento, o corpo sempre dá alguns sinais. 

Foram dias longos.
O Bruno se assustou com minha mensagem e veio logo.
Mas ele também não sabia bem como agir.  

O Bruno, meu grande amigo, sempre viveu protegido da vida.
Cresceu numa bolha segura, sem contato com os extremos da existência, fossem eles na euforia ou no luto.
Sorte a dele…
Viveu num certo equilíbrio, até que, depois, começou a descobrir seu verdadeiro eu.  Mas essa história bonita, que ele está a tentar construir, ainda precisa ser contada. Talvez um dia eu a escreva, se ele me permitir.  

De todo modo, foi ele que esteve ao meu lado naquele momento, junto com a amiga Paula.  

A ela, devo muito. Não uma dívida financeira ou uma obrigação.
Mas algo mais profundo: uma dívida de encontros humanos.
Daqueles que nos fazem lembrar que ainda há beleza e humanidade entre as pessoas.

Sentimentos que ultrapassam as pequenezas do cotidiano.  

Isso, hoje, é raro. 
Andando pelas ruas hoje, observo as pessoas.
Sempre penso que, a cada dia, suportamos menos, ouvimos menos.
Todos querem apenas falar, e falam tanto que nem percebem, sequer enxergam os outros.  

O egoísmo exacerbado, como dizia a Izildinha. Sábia, alguém que sabe viver e viver bem.  

Foram Bruno e Paula que me acolheram de imediato.
Aos poucos, outros amigos apareceram.
Não todos, claro.
É assim que funciona.
Quando sofremos, as pessoas se afastam.
É natural. Ninguém quer contato com a dor.
É mais fácil fingir, viver na ilusão de uma alegria constante.

Bruno hoje sabe bem disso. 
Às vezes, a vida dá reviravoltas muito grandes, e aprendemos a respeitá-la.
A viver com cautela. Nunca sabemos o que virá.  

Este texto está confuso, eu sei.
Mas é sempre assim quando escrevo sobre esse período. 
Como sempre digo, o trauma cria um hiato na memória.
E, ao escrever, tento organizar esse vazio.

Naquele momento minha consciência ficou desprotegida, e então deixei de conseguir produzir significado para o que vivi e para o para o que viveria anos depois, me tornei distímica.  

Até hoje, tento reconstruí-lo. Produzir sentido para o que deixou de ter.  

No choque ou sofremos, ou assimilamos. Não é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Talvez por isso, tudo ainda pareça tão real. 

Parece que todos os anos preciso voltar àquele dia, reorganizá-lo.  

Naquele 13 de novembro, me escondi.
Aos poucos, fui saindo.
Não foi fácil. Demorou anos.  

Alguns talvez não entendam o que foi isso.
Tudo bem. Não os condeno.
É sempre mais fácil lidar com a superfície. O profundo dói demais.

Mas ainda existia vida dentro de mim.
Fui capaz de agradecer ao médico que, com dignidade, continuou cuidando da minha mãe.
Ele nem sequer trabalhava naquele hospital.
Um gesto nobre, algo que apenas os médicos verdadeiramente humanos são capazes de fazer.
Lembro de ter ido até ele, um mês depois, apenas para agradecer. Ele chorou…


Lembro também da culpa que o professor Sinclair carregava.
Foi ele quem me incentivou a estudar fora.
E, como toda escolha implica renúncias, perdi os últimos momentos com minha mãe.
Quem poderia imaginar?

Hoje estamos aqui; amanhã, talvez não.

Fiz questão de dizer a ele (in memoriam) que aquela culpa não era dele.
Nem minha. Nem de ninguém.

A vida não é uma linha reta.

Nos últimos anos, sempre que essa data chegava, eu fazia um pequeno ritual:
levava uma flor ao rio.
Um gesto de despedida contínua.

Mas, recentemente, parei.
Percebi que, apesar da distância e do fim, ainda converso em consciência com minha mãe.
E, também, com meu pai, embora ele, sempre calado, apenas me observe.

Hoje escrevi duas páginas em dez minutos.
A depressão, por vezes, é criativa.

Mas, mais do que isso, quando reencontro minha dor, também reencontro minha força.
Percebo que tanta coisa é banal e eu não quero dar importância.
E aprendo a viver melhor, a dar valor ao que realmente importa.

Como dizia Belchior:
“Amar e mudar as coisas me interessam mais.”

Por isso, este relato se chama "Quando se aprende muito cedo a abrir as asas da alma."
Quando alguns laços se rompem, precisamos nos abrir de novo e encontrar outros laços.
Muitos não fazem isso.
Porque requer coragem.





sábado, 19 de outubro de 2024

2015: O fim e o início


Depois do medo, vem o mundo - Clarice Lispector


Tal qual foi minha surpresa ao ver que a nova sala tinha o número 2015, e imediatamente me remeteu a esse ano...

Talvez o mais difícil da minha vida, se 2014 não tivesse sido tão ruim. 

Mas não sei... O processo com o falecimento do meu pai foi aos poucos, como se estivéssemos nos despedindo dele ainda em vida. Já com minha mãe, foi uma perda abrupta, um tipo de choque que paralisa. Lembro desse sentimento, apesar de ter um hiato na memória... Lembro da minha reação.

Como assim a gente nunca mais iria se olhar? Minha mãe tinha uma coisa com o olhar, com seus olhos azuis... Expressava, além do céu, todos os sentimentos dela. A gente se entendia só por isso.

Voltando àquele número na sala, pensei no fim e no recomeço da vida. O mesmo ano, cujo número traz de volta um trauma, também me fez lembrar do início de algo. Talvez um aviso mental pra mim mesmo, visto que essa experiência é só minha, de que a cada dia a gente tem que recomeçar em meio a tudo. 

E foi assim que consegui superar tudo nesses últimos anos.

terça-feira, 30 de julho de 2024

educação, memórias e a era digital

Olhando este blog que comecei em 2010, quando ainda dava aulas, minha intenção era ajudar os alunos, que na época tinham pouco contato e habilidade com atividades em modo EAD, a se organizarem para realizar algumas atividades de estudo online. Foi uma forma que encontrei de aprofundar os conteúdos de sociologia, que naquela época só tinha uma ou duas aulas por semana, dependendo da série do ensino médio.

Mal sabia o que viria. Hoje, a sociologia está ainda mais desvalorizada e, ao mesmo tempo, tudo se faz pela internet, e pouco se faz em sala de aula, até pela precariedade existente.

O fato é que estava reparando que nos anos de 2014 e 2015 não postei absolutamente nada aqui, o que é muito compreensível, visto que esses foram os anos mais difíceis para mim. Tive que conviver com a ausência dos meus pais e, ao mesmo tempo, me organizar em outro lugar. Foi como se a minha história até aquele ano tivesse acabado.

Junto com meu irmão, saímos de casa e tivemos que doar grande parte das coisas do meu pai e da minha mãe. Tomei a consciência da finitude de uma maneira muito brutal, onde tudo acaba e ficam somente as memórias, essas que muitas vezes representam um hiato na nossa história.

Tendo consciência da finitude, passei a colocar aqui mesmo textos inacabados, e o blog foi tomando outro sentido, para além da educação. E não tem problema, sempre pode ser útil a alguém. Não sei...nos últimos meses me dei conta que tudo pode acabar a qualquer momento e escrever também é uma forma de deixar algo, ainda que seja uma reflexão. 

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Sete breves lições de física: uma reflexão da periferia


Este texto é parte de uma dívida grandiosa que tenho com meus amigos, uma vez que somos parte daquilo que nos rodeia. Resolvi redigi-lo a partir da proximidade e do agradecimento que tenho a duas pessoas muito especiais. Dete, amiga de infância, na época do pré-vestibular, me recordo como se fosse hoje. Ela não sabia bem o que fazer, já que trabalhávamos, e fazer uma faculdade nunca foi uma questão a ser pensada com a seriedade devida. Estudou, tornou-se física nuclear, um orgulho para mim. Mulher, periférica e física, isso não é pouca coisa. No meu entender, a partir das nossas dificuldades concretas da periferia em sua luta pelos estudos, valoro-a como se fosse o Einstein do nosso bairro. Dete gostava dos números, era muito ágil, pensamentos rápidos, diferentes de mim, que demorava porque estava sempre questionando os porquês.

A outra amiga fundamental desta escrita é Aline Leme, amiga do bairro, do lugar periférico, com os mesmos vícios que nos atravessam na Cidade São Jorge. Falamos hoje ainda do nosso cansaço generalizado por termos construído um caminho em meio a tantas pedras. Hoje as coisas parecem mais fáceis e tudo parece mais próximo; naquela época, tudo parecia muito distante. Estudar era algo como luz no final do túnel. Aline estudou na Universidade Pública mais elitista de São Paulo, um esforço hercúleo desde a distância até a sua permanência de pertencimento no lugar que nunca foi nosso. Ela é a pessoa mais apaixonada pelas fórmulas que conheço. Como poucos, consegue sonhar por meio de números e transformar sua paixão em aulas de matemática que são espetáculos, como merece o nosso povo. Ela é matemática, mas para mim compara-se a Max Planck, o físico, um pilar na física do século XX. Planck, ao calcular o campo elétrico no interior de uma caixa quente, destoou de tudo que se conhecia na época, quando a energia era tratada de maneira contínua. Estranhavam a visão de Planck na concepção da energia como pequenos tijolos (Rovelli, 2016:20).

Aline é como Planck, alguém que destoa do seu pequeno mundo, entretanto, quer crescer. É Einstein que vai, cinco anos depois da hipótese de Planck, comprovar os "pacotes de energia", escrevendo que a energia de um raio de luz não se distribui de maneira contínua no espaço, mas consiste em um número finito de "quanta" de energia que se movem, não se dividem e são produzidos e absorvidos como unidades singulares (Rovelli, 2016, 21). Na mecânica quântica, nenhuma partícula tem uma posição definida, a não ser quando colide com algo. Quando acontece a colisão, não é possível prever seus saltos, que são ao acaso; há probabilidades, mas não uma certeza, e a incerteza está no coração da física (Rovelli, 2016: 24). Para nós, faz muito sentido transpor as incertezas da física e a nossa colisão com o mundo que vivíamos e que vivemos. Nos rebelamos desde cedo, ainda o fazemos, e somos improváveis em nossos caminhos. Recorremos à coragem de ocupar o não ocupado, de pensar o não pensado, e de voltar ao nosso estatuto, sempre com o orgulho devoluto ao nosso povo.

São estes dois pilares, Aline e Dete, que me colocaram no caminho dos números e das Ciências Naturais. Como socióloga, sempre gostei, mas pude ir além, nos sonhos atravessados das amigas de infância, ir buscar as fórmulas, suas deduções, enquanto alguns estranham até hoje minha paixão pela física. Parte deste amor agora se explica. Somos seres sociais; são os amigos que nos talham e a ciência nos revela como compreender melhor o mundo, indicando a imensidão que ainda desconhecemos. O conhecimento é nossa busca insana, capaz de nos dar outras possibilidades de mundo e de vida... À medida que nosso conhecimento cresceu, fomos aprendendo cada vez mais esta noção de sermos parte, e pequena parte, do universo (Rovelli, 2016). Segundo os grandes físicos, o presente é algo que escoa, ele não é comum a todos. Então, registrar é um ato de existência. Até o fim, o desejo de entender sempre mais... (Rovelli, 2016).

Posto isto, resolvi ler "Sete Breves Lições de Física" como uma tentativa de buscar livros acessíveis para os alunos, os jovens, aqueles também apaixonados pelos números, mas que encontram poucos referenciais. O livro é ótimo, didático, e adentra conosco lentamente a conhecer as dúvidas entre os cientistas mais renomados do seu tempo, entre o pensar e o agir, alguns encarados inicialmente como tolos e que muitas vezes tiveram que retroceder e recuar em seu ideário inicial. 

O pensamento científico é nutrido pela capacidade de ver além, "diferente", e não simplesmente pela mera reprodução do mesmo, como uma fotografia que revela o instantâneo, mas sim pela percepção do que não é visível na imediaticidade, aquilo que não aparece aos olhares pouco sensíveis. A contradição entre Einstein e Planck são as duas vozes infindas do século XX; a relatividade geral e a mecânica quântica são duas formas diferentes de ver o universo. O mundo é um espaço curvo onde tudo é contínuo; o mundo é um espaço plano onde pululam "quantas" de energia, e a ciência se torna cada vez mais majestosa porque se encontra frente a dois conceitos geniais, e se pode pensar a partir dos caminhos já traçados e abandonados, esforçando-se para reunir a inspiração enquanto ainda existe bruma, e podemos interagir com todas estas variáveis para pensar o novo (Rovelli, 2016:50). Nós, na periferia, somos como elétrons em nossos lugares; às vezes saltamos e nos transformamos em átomos, deixando um legado para que outros nos sigam.